Ex-morador da Boca do Rio,  Manoel Soares assume apresentação do programa ‘Encontro’, na Globo

Ex-morador da Boca do Rio, Manoel Soares assume apresentação do programa ‘Encontro’, na Globo

4 de julho de 2022 0 Por Rebeca Almeida

Confira a entrevista com o jornalista que passa a apresentar o programa junto com a colega Patrícia Poeta.

Fonte: Correio* | Foto: Reprodução

Em suas andanças pela Boca do Rio, o jovem Manoel Soares sonhava muito. Aproveitava a iluminação ruim do bairro nas noites de dias quaisquer para ver o céu estrelado de Salvador e se imaginava ali no meio daquelas constelações. Manoel nunca sonhou à toa: sempre soube que não bastava querer e a vida ensinou que, em muitos dos casos, nem mesmo o trabalho duro é suficiente para garotos pobres, negros e longe dos principais centros do país – assim como ele era.

Nesta segunda-feira (4), ele dá mais um passo importante em sua trajetória profissional, iniciada no Rio Grande do Sul e que inclui passagem pelo Profissão Repórter e pelo È de Casa: assim que acabar o Bom Dia Brasil, estará numa posição histórica para comunicadores, comunicadoras e famílias negras: passa a comandar o programa Encontro, da Rede Globo, ao lado da jornalista Patrícia Poeta. Em entrevista ao CORREIO, Manoel falou sobre a carreira, trajetória, literatura, polêmicas e desafios que viverá a partir de agora.

Uma outra preta baiana que terá protagonismo na Globo é Rita Batista. A jornalista vai integrar o time do É De Casa a partir do sábado (9), ao lado de Maria Beltrão, Talitha Morete e Thiago Oliveira.

Você é natural de Salvador? Que lembranças tem da cidade?

Eu acho que a essência da Boca do Rio, aquele acesso para quem entra na Baixa Fria, pra mim é como se fosse um portal onde eu poderia mergulhar dentro da minha própria existência. Eu me lembro que eu ia para casa da minha tia no Barreiro e ficava sentado em frente a casa dela, que tinha uns becos bem íngremes e ali eu ficava olhando para o céu, porque como nós tínhamos pouca iluminação naquele lugar, não tinha luz de poste então a gente via o céu com todas as estrelas, e de vez em quando eu fico pensando que eu não sei se foi a infância que adocicou essa memória ou se de fato não existe céu tão estrelado quanto o céu das periferias da Bahia.

Por mais que essa realidade venha se modificando, ainda é raro ver rostos negros liderando programas na televisão brasileira. É muito pesada a cobrança de estar nessa posição?

Pesado acho que não é porque eu divido esse peso com toda família negra brasileira que está ali comigo e me incentiva, então isso faz com que esse momento não seja um momento de peso e esse momento significa que o povo negro pode e conquista. Há 132 anos, eu seria vendido por R$ 400 no Pelourinho de Salvador, então hoje eu estar em um programa de televisão como uma pessoa negra e comandando um matinal é a prova de que nós podemos fazer a diferença, não que seja fácil, não que eu seja uma prova de que quando você quer consegue, porque nem sempre quando a gente quer a gente consegue. Mas a minha colocação nesse espaço é a prova que a luta que os nossos antecessores e nossos antepassados travaram foi uma luta que valeu a pena.

Você entrou na Globo e nesse setor de entretenimento meio por acaso. Imaginava que ia ficar tanto tempo? E o que mudou de lá pra cá?

Entrei não foi tão por acaso assim, porque existe todo um objetivo por parte da minha família em construir a realização dos nossos sonhos. Estar lá é a realização de um sonho, mas não somente de estar na Globo, mas de conversar com as pessoas em um espaço onde elas possam acessar essa conversa. Pra mim é extremamente importante porque quando nós entramos na casa das pessoas, nós temos a possibilidade de melhorar o dia delas e esse é o nosso grande objetivo, melhorar o dia das pessoas e fazer delas pessoas mais preparadas para conquistar os seus sonhos. Eu sempre ouvi na vida que “nós temos que trabalhar duramente, trabalhar arduamente” e eu acho que as pessoas precisam trabalhar alegremente e trabalhar felizes, aí sim as realizações acontecem. Foi isso que minha mãe me ensinou e é isso que a gente quer transmitir nessas manhãs na Globo.

Qual o tamanho da responsabilidade de assumir a apresentação do Encontro, um programa que está entre os líderes de audiência das manhãs na televisão brasileira?

Eu acho que essa responsabilidade é uma responsabilidade que pra mim é muito mais de honrar o esforço dos meus ancestrais. Quando nós temos na Bahia o Vovô do Ilê, temos Jorge do Olodum, temos toda velha guarda baiana que criou a possibilidade de eu me tornar o cara que eu sou, eu sou a consequência da luta desses homens, eu sou a consequência do movimento negro da Bahia, a consequência de todo mundo que lutou, da Central Única das Favelas, para que eu me tornaasse esse cara. Então a minha responsabilidade é manter o nível de qualidade de luta que meus antecessores travaram.

O que você vai levar para deixar mais a sua cara?

Acho que o mais importante é a gente ouvir as pessoas e entender que a fonte oficial do que nós fazemos é o interesse público. A fonte oficial não é o que o governo diz, a fonte oficial não é o que as empresas dizem. A fonte oficial do que nós fazemos, a matéria prima que a gente coloca na televisão, é o interesse do público, o que as pessoas precisam e querem ver. Acho que essa é uma marca da TV Globo, e é uma filosofia particular de trabalho que eu tenho.

O caso de Dona Silene, convidada do É De Casa, que recebeu a bandeja para servir os convidados do programa foi algo que repercutiu mal aqui fora. O fato de você pegar a bandeja para servir no lugar dela tornou a imagem ainda mais simbólica e forte. Qual a avaliação que você faz deste caso?

O que aconteceu com a Dona Silene naquele dia acontece inúmeras vezes em diversos cenários brasileiros. A minha preocupação não é a repercussão do que aconteceu com ela, mas o que as pessoas fazem com as Donas Silenes do seu cotidiano. Será que nós tratamos as mulheres negras com respeito necessário? Será que quando a mulher negra chega na nossa casa e diz que a faxina dela custa R$ 170 reais, a gente pede para que ela abaixe esse valor? Será que quando uma mulher negra chega oferecendo uma roupa pra gente, a gente pede desconto para ela ou a gente a critica? Quando uma mulher negra é mãe solo, será que nós a respeitamos nesse lugar? Então acho que o Brasil, mais do que defender a Dona Silene, precisa repensar como é que ele trata as mulheres negras, acho que esse olhar crítico nós temos que ter o tempo todo.

Há pouco tempo você esteve na África? Poderia falar um pouco mais sobre os destinos e os impactos da viagem na sua vida?

Eu digo a você que eu já estive na África pelo menos umas 15 vezes e toda vez que eu vou é diferente, costumo dizer que preto não vai para a África, preto volta, a gente já é de lá. Recomendo a todo mundo que vá. Em um país, por exemplo, como Angola, você tem pelo menos 30 culturas diferentes. Em um país como África do Sul, você tem quatro idiomas diferentes que são correntes. Você vai em um lugar como Zanzibar, tem uma beleza que pra mim é superior à beleza das ilhas Maldivas, então o dia que o Brasil descobrir a África, o Brasil vai se redescobrir e esse é meu desejo para esse continente.

Você poderia falar um pouco mais sobre o papel da literatura, especialmente a literatura infantil, em sua trajetória? Há algum novo livro à vista?

A literatura é a grande possibilidade da criança se conectar com o que ela vai ser no futuro, eu acho fundamental que nós criemos uma intimidade dos nossos filhos com as letras. Infelizmente os nossos pais talvez não tenham tido a oportunidade de nos incentivar a leitura. Eu escrevi dois livros infantis e sou muito feliz por isso, agora já estou lançando meu terceiro livro, que não é um livro infantil é um livro adulto “Para Meu Amigo Branco”.